Em pleno século XXI, quando já deveríamos ter superado a luta por igualdade de direitos entre homens e mulheres, vemos que ainda temos muitas barreiras a transpor e paradigmas a quebrar antes de podermos ver isso acontecer na prática. O debate sobre gênero e cidade vem para esclarecer que estudar a cidade sob a perspectiva da mulher é mergulhar na base da experiência local, a das necessidades do corpo e da vida cotidiana.
Para entendermos o atual momento da sociedade é necessário ter a clareza de que esta é resultado de uma construção histórica de fatos e movimentos, determinantes das funções e papéis exercidos hoje não só pelas pessoas, mas também pelos espaços das cidades. Ao longo do processo de desenvolvimento urbano a mulher assumiu o papel de cuidadora do lar, da família, da casa, e esse papel se expandiu para a organização comunitária. Sendo assim a figura da mulher representa não só ela mesma como também a criança, o idoso, o próprio homem – no papel de seu cônjuge – e a relação da casa com a cidade. Essa rica experiência faz com que a mulher desenvolva uma sensibilidade quanto à importância do desenvolvimento da cidade, principalmente em função das necessidades da sociedade que ali habita.
A medida que a mulher aumenta a quantidade de funções que assume enquanto pessoa, cidadã, trabalhadora, mãe, cuidadora, ela também percebe a necessidade de dividir essas tarefas. Essa necessidade, e a mobilização por ela gerada, chama atenção para o fato de que a cidade e a sociedade organizadas podem também colaborar para cuidado com os cidadãos. E neste momento aparecem os conselhos, que são locais de fala e representação como o conselho da saúde, da educação, habitação, cidade.
No entanto, dentro da hierarquia da produção a mulher vem ocupando principalmente os papéis no trabalho de base, ainda sendo representada na tomada de decisões por homens, pois são poucos os casos de mulheres que ocupam papéis de importância política. A dificuldade está no direcionamento que as cidades vem tomando dentro da lógica patrimonial e patriarcal, bem como os diversos conflitos que esse sistema gera. A lógica de funcionamento da cidade mercado, que leva em consideração principalmente os fluxos econômicos, tende a criar uma cidade bastante segregada. Hoje quando dizemos “uma cidade para todos” na realidade estamos falando apenas de uma parcela da sociedade, especificamente aquela que produz e consome, constituída em sua maioria por homens, brancos, jovens.
Outra quebra de paradigma que precisa ser feita é no tipo de relação organizacional que temos. Se tivermos o foco na participação social e na valorização do coletivo, respeitando os indivíduos com as suas singularidades, precisamos trabalhar em rede, em sistemas horizontais, de baixo para cima. Os processos de cocriação tem como diretriz atender a diferentes demandas, partindo de uma visão global das necessidades para procurar soluções possíveis dentro dos recursos existentes.
A tomada de consciência dos nossos direitos é o primeiro passo.
O segundo seria encontrar formas de estimular mudanças de comportamento e o terceiro, formar alianças para crescermos juntos.
Precisamos lutar para não naturalizamos mais comportamentos que inferiorizam, humilham ou agridem qualquer tipo de pessoa. Queremos espaços coletivos e não o contínuo estímulo a segregação que vem se materializando hoje nas cidades, criando lugares somente para mulheres, lugares para lgbts, lugares para ricos, lugares para pobres, dividindo a cidade em uma infinidade de guetos. O natural devem ser os lugares onde todos se sintam em segurança, sejam eles iluminados ou não, com pessoas ao redor ou não, onde todos se sintam parte.
Os movimentos de ocupação do espaço urbanos são uma ferramenta de empoderamento, onde é possível juntar diferentes grupos com interesses semelhantes e provocar uma mudança de comportamento. São uma forma de nos mostrarmos como parte constituinte das cidades, aumentando a visibilidade destes diversos grupos menos favorecidos para, quem sabe, chegarmos às posições de liderança para fazer, produzir, construir cidade.
Estamos chegando na metade da escada da participação popular. Temos informação sobre os nossos direitos mas ainda não nos inserirmos nas posições de poder, para construirmos ações transformadoras. Para chegar ao próximo nível precisamos sair da zona de conforto e ir para o front, onde o engajamento tem que ser outro e o compromisso maior, já que estamos falando da representação de um coletivo. O empoderamento é uma construção, com ele lutamos por mudanças de comportamento e por mais espaços de representação. O objetivo é desconstruir o padrão da política vigente, para construir cidades que tenham mais empatia pelo próximo, respeitando as singularidades e necessidades humanas.
O texto foi produzido a partir das reflexões feitas no evento Conversas Urbanas #2, que aconteceu em junho de 2018 com a arquiteta urbanista Daniela Pareja Sarmento. Você pode vê-lo na íntegra em nosso canal do Youtube.