O isolamento imposto pela pandemia do Coronavírus (COVID-19) obriga a nos protegermos em nossas casas. Nunca antes esse espaço foi tão importante. Se já era nosso abrigo familiar, agora transforma-se no lugar de defesa sanitária de toda a sociedade.
Nossa casa garante, ou deveria garantir, a proteção de seus moradores em condições mínimas de saúde e segurança. Entretanto, grande parte da população brasileira mora em ambientes inseguros e doentes. Casas que não oferecem os espaços mínimos para atividades básicas; instáveis e mal construídas, sem nenhum conforto; casas sem banheiros, sem destino adequado para o esgoto; muito frias ou muito quentes, úmidas, mal ventiladas e iluminadas; com muitas pessoas morando juntas e, frequentemente, convivendo com dejetos e animais perigosos.
A casa está doente quando não garante a seus moradores as condições mínimas de segurança e saúde. Uma casa doente deixa seus moradores doentes e pode colocar em risco toda a comunidade. Diversas enfermidades estão diretamente associadas às condições de moradia. A tuberculose se propaga em ambientes mal iluminados. A diarreia mata, em média, 2.500 crianças por ano no Brasil, pela falta de higiene básica, como lavar as mãos e os alimentos. Alergias e muitas doenças respiratórias estão associadas a ambientes úmidos e mal ventilados. A leptospirose contamina pessoas que convivem com urina e fezes de ratos. Todas essas enfermidades são curáveis, apesar de matarem milhares de brasileiros por ano, além de consumirem enormes recursos do Sistema de Saúde.
Mas o Sistema de Saúde não tem remédio para a casa. O tratamento e os remédios não combatem as causas, e sim apenas as consequências, pois enviam os enfermos de volta à casa que os deixou doente. São os arquitetos e arquitetas que têm os remédios para curar a casa que deixa as pessoas doentes. Banheiro, água potável, fossa e destino adequado para o esgoto, cômodos mais amplos e confortáveis, melhor iluminação e ventilação, acessibilidade, estabilidade da construção e instalações são atribuições profissionais do arquiteto e urbanista.
Neste momento, em que as medidas de contenção da pandemia colocam a nossa casa como centro da estratégia, como ficam os nossos vizinhos que moram sem condições mínimas de saúde e segurança, nas nossas vilas e favelas, e que também precisam adotar as medidas preventivas oficiais, como lavar as mãos e se isolar em casa? Cerca de 7 milhões de moradias em todo país apresentam carência de infraestrutura [1], ou seja, não dispõe de serviços básicos como abastecimento de água, destino adequado do esgoto e do lixo. As necessidades habitacionais enfrentadas por grande parcela da população são históricas e vão além da moradia; presumem a construção de cidades sustentáveis, a melhoria de infraestrutura urbana dos bairros existentes e o enfrentamento de aspectos legais para a garantia da posse da terra e da moradia.
Contudo, desde 2008, uma lei federal permite que seja criado e implantado um serviço público para melhorar a moradia das famílias com renda de até três salários mínimos. Essa lei visa atender o direito à moradia, garantido a todos os brasileiros pelo artigo 6º da Constituição Federal, assim como saúde, educação, segurança e outros. Para atender ao direito à saúde, temos o Sistema Único de Saúde (SUS), universal e gratuito para toda a população, e que faz do Brasil uma referência internacional (a atual crise demonstra sua relevância e importância). Na área da educação, temos desde creches até universidades públicas. Na área da segurança e da justiça, as polícias, o judiciário, o Ministério público e as Defensorias Públicas, responsáveis por garantir às pessoas necessitadas o acesso à justiça de forma gratuita.
Entretanto, para garantir o direito à moradia digna ainda não temos um sistema público e gratuito para assegurar às famílias de baixa renda a assistência técnica de profissionais capacitados. A Lei 11.888/2008 tem exatamente esse objetivo: tal e como no SUS, a universalização do acesso aos serviços de arquitetura e urbanismo, visando a oferta de serviços técnicos de forma remunerada, custeados por recursos públicos, necessários para o projeto e a construção da habitação, a regularização fundiária e melhorias urbanas. Essa lei é resultado da luta liderada pelo arquiteto gaúcho Clovis Ilgenfritz da Silva, iniciada na década de 1970, e que conseguiu aprová-la quando deputado, com a colaboração do também deputado e arquiteto Zezéu Ribeiro e das entidades profissionais.
Conhecida como Lei da ATHIS (Assistência Técnica para a Habitação de Interesse Social), é reconhecida como a grande oportunidade de qualificarmos em larga escala a habitação no Brasil, atendendo as famílias onde elas moram e têm relações sociais, resolvendo seus problemas específicos e qualificando suas casas, comunidades e cidades. No Rio Grande do Sul, a assistência técnica poderia atender metade da população (48%, 4,6 milhões de gaúchos) [2] possibilitando o atendimento direto das famílias por um profissional arquiteto e urbanista.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), órgão de regulação e fiscalização da profissão, destina, desde 2015, 2% de seu recurso orçamentário para a promoção e implantação da ATHIS. Com esse recurso, o CAU/RS apoia e patrocina diversas ações de entidades, faculdades, ONGs e constituiu, em 2019, o Gabinete de ATHIS, que tem o objetivo de diagnosticar, divulgar e fomentar diretamente a ATHIS, notadamente para ajudar os municípios a implantar essa política. Nesse sentido, a principal ação do Gabinete da ATHIS foi a criação do “Programa ATHIS Casa Saudável” com projetos pioneiros sendo iniciados por algumas prefeituras do estado do Rio Grande do Sul. O programa prevê exatamente a integração de um profissional arquiteto e urbanista junto às equipes que trabalham com a Estratégia Saúde da Família (ESF) nos municípios gaúchos. Com essa iniciativa, as equipes de saúde passarão a contar com o profissional que faltava – o arquiteto e urbanista – aquele que tem remédio para a casa e que, junto com os demais profissionais que têm remédios para as pessoas, ajudará a melhorar a saúde, a segurança e a qualidade de vida da família atendida.
A ATHIS é uma política pública que, além de assegurar moradia saudável e segura à população de baixa renda, também diminui os gastos com saúde pública, melhora a qualidade de vida dos bairros e comunidades e ainda movimenta a economia e o comércio local, gerando emprego e renda na área da construção civil. Veja mais sobre ATHIS no site do CAU/RS: www.caurs.gov.br/athis
Nessa situação de pandemia mundial que vivemos, ampliada em muito no Brasil pelas condições dramáticas de desigualdade e pobreza, a ATHIS poderá ser uma política efetiva de recuperação do estado atual de precariedade habitacional e falta de condições sanitárias mínimas. Poderíamos ter avançado antes, se houvesse a implantação da lei desde 2008, quando foi aprovada. Não faltou empenho das entidades profissionais dos arquitetos e arquitetas nesse período. Logo, passado o tsunami do vírus, pelo menos já temos uma proposta concreta e factível, complementar à política de saúde e amparada pela legislação, para reconstruir a nossa sociedade salvando vidas no dia a dia, prevenindo crises futuras e melhorando a qualidade de vida dos que mais necessitam.
Notas
[1] Fundação João Pinheiro. Déficit habitacional no Brasil, 2018.
[2] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2015.
* Presidente do Conselho Diretor do CAU/RS